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domingo, 13 de maio de 2007

Parabéns a todas as mães da periferia

DONA MARIA


Empinar pipa, correr pra lá e pra cá, jogar bola, driblar as dificuldades. A mulecada que mora na periferia vive sua infância desse jeito. O pequeno Liminha não era diferente. Quando chegava a época de empinar pipa, ele olhava pro céu deslumbrado, vendo aquela diversidade de cores e rabiolas trêmulas no ar.
Liminha morava com sua mãe, Dona Maria e com seu padrasto, conhecido como Seu Firmino. Liminha nunca conheceu seu pai biológico, Dona Maria evitava falar sobre esse assunto, havia muita mágoa no coração dela. Ele tinha mais dois irmãos: o recém nascido Douglas e Cláudio, seu irmão mais velho, chamado por todos de Nego Clau. A família de Liminha morava numa casa suspensa na beira do córrego que passava atrás da sua casa. Dona Maria se esforçou muito para construir essa casa de alvenaria, de apenas dois cômodos, pois quando sua casa era de madeira e ficava no nível do córrego, as enchentes em dias de chuva forte eram constantes. Dona Maria trabalhava de auxiliar de limpeza em uma agência bancaria no centro comercial da cidade. Cansada de perder mantimentos e moveis na enchente, por diversas vezes, ela foi construindo sua casa de bloco vermelho devagarzinho, de areia em areia e de pedra em pedra.
Seu Firmino levantou todas as paredes da casa. Como ele estava desempregado, aproveitava o tempo livre para trabalhar na obra. A situação da família do pequeno Liminha estava prosperando, e Dona Maria orava, todos os dias, agradecendo. Ela mantinha a fé em dias melhores:
– Graças a Deus e ao Nosso Senhor Jesus Cristo, nossa casa ta levantada! Agora só falta o Firmino e o Cláudio arruma um emprego e com fé eles vão consegui, já coloquei o nome deles na lista de oração da igreja.
Como Liminha não tinha seu pai verdadeiro por perto e seu Firmino era considerado por ele como um tio, seu maior espelho e referência era seu irmão mais velho, o Nego Clau. Liminha via no seu irmão um grande homem e prestava a atenção
nas atitudes e nos conselhos dele:
– Ó pequeno, se tem que respeitar a mãe e nunca responde ela e na escola tem que estuda e não faze bagunça, viu!
– Ta bom, Clau!
Nego Clau, como a maioria dos jovens na faixa dos dezoito anos, era um rapaz formado e bastante namorador. Uma vez, um malandro da área, conhecido como Tiziu, ficou com ciúmes de ver o Nego Clau conversando com uma garota que ele tava a fim de paquerar, na porta da escola. Essa mina nem dava bola pro Tiziu. Só que ele se aproveitou que o Nego Clau era seu desafeto antigo e usou o ciúme pra provocar uma treta.
– Ai neguinho, num quero vê ce xavecando minha mina mais não, hein! Se não vai fica ruim pru ce!
– Xavecando quem rapaz, ta loco!
– Loco nada! Eu vi a cena na frente da escola. Pensa que eu to marcando?
– Ih Tiziu, aquela mina nem tem namorado! Num se cresce não! Ta me diminuíno na frente do zotro, só por que viro malandro!
– È desse jeito, marca na minha pru ce vê! Nunca fui ca tua cara, memo!
A discussão entre os dois no meio da rua chamou a atenção do pequeno Liminha. Ele tava brincando de bolinha de gude com seus amiguinhos e quando viu seu irmão discutindo largou tudo e correu pra sua casa, para avisar Dona Maria:
– Mãe! Mãe! O Clau ta discutindo com o Tiziu lá na rua.
– Volta lá e fala pra ele vim pra casa e dexa de confusão com gente encrenquera! Esses menino nunca se dero, desde criança! – Ordenou Dona Maria.
Liminha fez o que sua mãe pediu, correu na rua e foi em direção ao seu irmão. Quando tava chegando perto da discussão, Liminha percebeu que o Tiziu já tava com uma arma na mão, pronto pra atirar no Nego Clau. Ele tentou correr mais rápido, mesmo em passadas curtas e antes que ele pudesse falar algo pro seu irmão, ouviu o barulho de três disparos. Liminha parou e ficou em choque. Tiziu cravou três balas no abdômen de Nego Clau e fugiu. Tudo aos olhos de Liminha. Na favela não tinha um só
carro pra socorrer o jovem baleado. Dona Maria, também ouviu os disparos e correu pra rua de pernas bamba. Quando viu o tumulto, ela foi até lá e viu Liminha chorando, agachado do lado do seu irmão, gritando:
– Salva meu irmão! Salva ele!
Nego Clau sangrou muito e morreu ali mesmo, deitado na rua. Alguns moradores cobriram o corpo dele com jornal. Outras pessoas levaram Dona Maria pra casa carregada. Ela começou a passar mal quando viu essa cena. Logo depois, começou a chover forte e somente Liminha, chorando muito, ficou velando o corpo do seu querido irmão.
Esse acontecimento abalou o psicológico de toda a família do Nego Clau, principalmente da Dona Maria, e de Liminha. Nunca mais eles foram às mesmas pessoas. Liminha ficou bem perturbado, principalmente quando pensava que poderia encontrar com Tiziu. O assassino fugiu e não voltou mais na favela. Tiziu representava medo ao menino. Liminha começou a tomar remédio de tratamento psiquiátrico, por causa disso. Ele largou a escola e perdeu muito da sua magia de infância. Seu sorriso ficou triste e sua motivação era quase nenhuma. O seu amiguinho Lucas ate tentava animá-lo um pouco e sempre o chamava pra brincar:
– Liminha! Liminha
– Quem é? Eu não vô saí não!
– Sou eu, Lucas! Vamo lá na rua empinar um peixinho que eu peguei mandado!
– Daqui a poco eu vo lá! – Liminha respondia, mas nem aparecia na rua.
Depois de alguns anos, Tiziu, que tava morando em outra quebrada, foi preso durante um assalto. Ele acabou encontrando alguns desafetos no sistema carcerário. Num acerto de contas ele foi morto à base de várias facadas. Essa noticia chegou até os ouvidos de Dona Maria, que procurou tranqüilizar Liminha:
– Oia fio, eu fiquei sabendo hoje que mataro aquele covarde dentro da cadeia. Se não precisa te medo dele mais não!
Liminha nem respondeu, mas abraçou sua mãe bem forte. Ele se sentiu aliviado.
A partir daí Liminha procurou cuidar bem do seu irmão mais novo, Douglas. Ele já estava bem crescido. Quando os dois irmãos andavam juntos parecia uma imagem do passado, do pequeno Liminha ao lado do finado Nego Clau. Liminha ficou bem parecido com seu finado irmão, quando estava com dezessete anos.
Como parou de estudar, Liminha procurou fazer alguns bicos para ajudar sua mãe em casa e dar um bom exemplo para seu irmão mais novo.
Quando Liminha já era um adulto formado, fisicamente, ele fez um carrinho e começou a coletar papelão, cobre e alumínio para vender no ferro velho do bairro. Aos poucos ele foi pegando a manha do serviço e com uma boa quantia que ganhou ao vender alguns quilos de cobre, conseguiu comprar um cavalo para puxar uma carroça, Dessa forma, ele podia carregar mais peso e valorizar o seu trabalho. Liminha se tornou um exímio catador de material reciclável. Pra maioria das pessoas um simples e marginalizado catador de papelão. Esse trabalho era visto com muito preconceito, até mesmo entre os vizinhos de Liminha. Muitos caras jovens, que nem ele, não tinham coragem de fazer o mesmo trampo, mesmo precisando, e ainda criticavam o trabalho de Liminha, que não dava à mínima. Ele dizia orgulhoso para Dona Maria:
– Ta ai mãe o dinheiro pra comprar a mistura e fazer a compra. Tem muita gente que nem olha mais na minha cara porque eu sou catador, mas eu nem ligo! Bandido é que eu não vou virar.
– Deus te ouça, meu fio!
Uma das pessoas que nunca desmerecia Liminha por causa do seu trabalho era a jovem Paula. Ela era nascida e criada no bairro, igual à Liminha e os dois eram amigos desde infância. Paula sempre falava com admiração de Liminha a sua amiga Márcia:
– Nossa como o Liminha é trabalhador! Eu peço a Deus que o pai dos meus filhos seja assim, esforçado como ele!
– To sentindo um clima, hein, Paulinha!
– Para Ma! Se me dexa com vergonha desse jeito!
– Ah! Ceis dois sempre foram paquerinha um do outro mesmo!
– Para que ele ta vindo!
Quando Liminha passava e cumprimentava as meninas, Paula ficava muito feliz. Sua amiga Márcia, tava mais do que certa na previsão que ela fez. Um clima romântico estava no ar. O inicio de uma aproximação foi uma questão de tempo. Liminha pediu Paula em namoro:
– Paulinha, ce qué namora sério comigo? Pra anda de mão dada e tudo?
– Não sei Liminha!? Será que a Dona Maria vai aceitar você comigo?
– Claro que vai! Minha mãe acha você uma menina de respeito!
– Ela disse isso? Que bom!
– Mas ce vai ter coragem de namora com um catador de papelão?
– Eu admiro muito seu jeito e sua pessoa! Não pense assim!
Quando Liminha ouviu essas palavras de Paula, se aproximou dos seus lábios e lhe deu um beijo. Ela lhe deu um forte abraço e os dois ficaram se acariciando por um bom tempo.
Liminha encontrou, nos braços de Paula, uma nova alegria. Ele nunca esquecia o que aconteceu no passado com seu irmão. Mas o sentimento de amor fez Liminha acreditar numa razão para viver. Ele continuou a trabalhar muito, todos os dias da semana e dessa forma conseguiu comprar uma casa ao lado da casa de sua mãe. Essa conquista veio a calhar, pois Paula ficou grávida alguns meses depois. O casal pode viver numa casa só deles, com seu filho. Ou melhor, filha, que ao nascer ganhou o nome de Érica.
Paula e Liminha ainda tiveram mais dois filhos: Luciano e Gabriel. Na casa dessa família todo sustento era garantido com o trabalho de Liminha. Paula sempre ajudava seu marido de alguma forma. Assim como Liminha, ela se mostrou ser uma mulher batalhadora.
Dona Maria se aposentou, após muitos anos tentando esse beneficio, e apesar do falecimento de seu Firmino ter lhe trazido uma grande tristeza, no mesmo ano que nasceu seu neto Luciano, ela estava firme em ver seu filho Douglas se espelhando na trilha de Liminha. Douglas trabalhava de manhã em uma serralheria do bairro e a noite estudava o colegial, seu sonho era ser bombeiro.
Apesar dos desacertos e das dificuldades de viver no gueto, a família da Dona Maria resistiu com dignidade. Pois ela tinha a convicção que se tivesse fé e levantasse a cabeça nas adversidades, seus filhos e seus netos sempre encontrariam nela um exemplo de força pra seguir em frente, mesmo na derrota. Dona Maria é uma mãe guerreira da periferia e o seu legado ficou presente pra sempre na vida de todos os seus descendentes.

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