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domingo, 30 de setembro de 2007

(QUASE) SEM NOVIDADE*** por Michel da Silva

O menino com sua fiel namorada redonda ensaia o elástico que será aplicado no contra marcado no campinho...
O motoqueiro acelera, o cachorro corre atrás...
...Ouço sons...
...Ouço vozes.
Vindo de muitas portas.
A força do refrão aumenta:
“Tereza Aragão, Tereza Aragão...”
“Um bom lugar, se constrói com humildade...”
“Fiquei louco de amor, vem me namorar céu...”
Sinto o poder das atabaques cada vez mais perto, mais rápido. A fila do passe seduz meu pensamento.
“Prepara a terra que eu to descendo...”
Caboclo Ubirajara dá o seu recado.
O cansaço vence meu pensamento.
Vou seguindo...
Muita tosse em meio á fumaça do mato queimado. Puxada forte. Provoca um leve assovio. A brisa já não é mais como antes.
Buteco improvisado, forró em toda altura, irrita alguns vizinhos, mas não contagia o imigrante nordestino, que tem como única companhia o copo de cachaça e o cigarro do Paraguai, enquanto pensa na mulher e nos filhos que ficaram na terra natal.
O hino evangélico disputa altura e atenção porta a porta. Senhoras se empenham na fé para louvar o Senhor e afastar o Inimigo.
Ao lado, o barulho seco da bola descendo na caçapa indica uma bela tacada de mais Rui Chapéu anônimo.
A sirene ligada, porém silenciosa, surge na esquina. Torço pra brasa do mato já ter se apagado.
No curto espaço da viela a fissura passa rápido. A latinha na mão indica que a Dona Maria vai ter que sentir aquele cheiro de lixo queimando dentro de casa mais uma vez e que o novo esconderijo do dinheiro do gás foi descoberto.
Meninas rumo ao pagode passam e alastram o cheiro do banho recém tomado, abatendo até o cheiro do esgoto. Depois do banho saíram com tanta pressa que esqueceram até de colocar a roupa.
Televisores ligados na novela das oito é mato.
Mais um buteco, microfone no pedestal. Será que vai tocar “Alguém dos teclados” ao vivo de novo? Não! Não! É algo diferente! A curiosidade convida pra tomar uma cerva. Ouço uma voz, mas cadê a música?
“Não pense que sua vida/É como numa novela/Que no fim tudo termina feliz e bela/Menino e menina/Preste atenção/Nóis somos criados em favela”
Aplausos calorosos, no destaque uma senhora que eu nunca notei antes, parece que nem to no bairro que já moro há alguns anos.
“Junto com meu povo/Sou sofredora/Descriminada pela sociedade/Por esses porcos comedores de lavagem/Se me encontram na minha quebrada/ Não falam nada/ Só sabem perguntar/ E aí cê tem passagem?”
Palmas, Palmas. Sigo o fluxo. Mais palavras, mais vozes. Carta ao presidente, Orgulho Negro...
“Um sentimento/ Desse momento”. “Sem Sarau não dá”.
Sarau? Na faixa em meio às caixas de cerveja... Sarau?
Bato palmas, sorrio e até esqueço o cansaço. Mas o que é Sarau? Curiosidade chama outra cerva.
Tenho vergonha de perguntar e resolvo descobrir sozinho. O guardanapo do balcão se torna o refúgio das palavras que vem do coração. Tomo coragem, peço licença. Divido meus sentimentos e sou igualmente aplaudido por isso.
Depois deu um dia cansativo e quase rotineiro terminei minha saga diária aplaudido. Aplaudido por dividir e receber algo tão especial da minha mais nova comunidade. Aplaudido por descobrir, num lugar onde parece que todo dia é sempre mesma coisa, o significado de uma palavra nova, de um acontecimento novo. Nunca dito antes por aqui. O significado da palavra “Sarau
”.


***Uma homenagem aos poetas e poetizas que fazem acontecer semanalmente o Sarau Elo da Corrente, no bairro de Pirituba zona oeste de São Paulo.

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