“Crianças
vivam a sua cultura (Estilo dread nativo)
E não
fiquem parados com gestos (Estilo dread nativo)
Oh, a
batalha será mais quente (Estilo dread nativo)”.
Trecho
“Natty Dread” Bob Marley
Há
sempre um incomodo escancarado nos becos que ando por aí, minha mãe sempre
disse que um dia eu ia levar uma porrada na rua por encarar as pessoas, por
andar de nariz empinado, oras, como se fosse pecado. Há exatamente 2 anos e 3
meses uso dreadlooks, sonho meu desde que afirmei minhas raízes.
Quando
era adolescente costumava a usar tranças soltas feitas pela minha prima Mila,
coitada da Mila passava 4 horas ou mais traçando minhas madeixas. Minha mãe era
a primeira em casa a me chamar de Bob Marley, até então, conhecia as musicas e
confesso, gostava bastante, mas como me achava uma adolescente roqueira, nunca
assumi que gostava de reggae, samba, entre outros gêneros musicais. O fato é
que essa comparação me irritava muito, mas como uma boa pirracenta que sou
continuava trançando. Minha mãe achava que usar tranças estragava o cabelo, mas
pra mim, era uma forma de me sentir livre, não sabia definir a sensação, mas
acordar todo dia sem passar pelo pesadelo dos pentes e dos cremes de pentear
era um grito de liberdade de fato. Lembro de ter usado, uma vez, ferro de
passar no cabelo, meu pai ficou uma fera comigo, mas as pessoas, atrevidas como
sempre, falavam que eu estava linda, o engraçado é que olhando uma foto que eu
estava de cabelos ferrados, não estou ali, estou longe, bem longe.
Depois, tive uma briga feia com os cachos e
cortei bem o cabelo, considerando que eles eram longos, cortar o cabelo no
pescoço para as pessoas e seus enxerimentos foi um absurdo. Minha mãe acha que
eu gosto de desafiar as pessoas, sempre as pessoas e seus pudores. Pois é, não
podia nem cortar meu cabelo! Usei muito tranças de raiz, por um tempo, e tinha
que aturar as pessoas dizendo “mas seu cabelo não é tão ruim”, “mas você fica
com cara de neguinha”, raramente alguém dizia “nossa, combina mais com você”.
Os
dreads pra mim eram um sonho. Me preparei durante dois anos pra poder fazê-los,
esperei pacientemente e um belo dia marquei horário com uma amiga e ela formou
os tão esperados dreads.
É
sim uma mudança radical, não nego, até porque a gente pensa que os dreads vão
ficar longos e soltos e os meus, no caso, ficaram curtos e espetados. Achei que
não iam mudar, mas os dreadlooks são uma metamorfose nas nossas metamorfases,
eles se moldam e tem seu tempo certo pra florir, quem usa ou quem já usou sabe
bem o que eu digo. É como uma planta, que você cultiva, lava, rega, hidrata,
perfuma, e vai descobrindo varias formas de cuidar, desvendamos os mistérios
dos dreads quando passamos a tê-los.
Por
varias vezes, andando pelas ruas ouço "Bob Marley” ou “olha só o cabelo do
Bob Marley”, às vezes só o olhar já basta pra saber que essas pessoas estão
muito incomodadas, demais até. Outro dia andando com minha irmã passou uns
caras num carro e cantaram: “I wanna love you and treat you right”, cantaram a letra toda
errada, nem sabiam o que diz a letra, minha irmã ficou brava, eu sorri. Não foi
a primeira vez, nem será a ultima. Outra coisa: ser comparada ao Bob não é
ruim, como devem achar, mas eu preferia ser comparada a Rita Marley que também
possui dreads, lindos dreads por sinal, mas como não conhecem mulheres com esse
penteado tão encantador e provocativo será sempre Bob Marley que eu e outras
companheiras vamos ouvir.
Comecei a prestar mais atenção
no que tanto incomoda as pessoas, afinal, quem usa dreads sou eu. Boa parte,
mas boa parte mesmo acham os dreads bonitos, mas não tem coragem de falar,
porque tem medo do que os outros vão pensar, ou porque o padrão de beleza
estabelecido não tem jamais uma pessoa de dreads, outras porque pensam que tem
piolho. Ué, todo cabelo liso, crespo, dredado, trançado está sujeito a pegar
piolho. Outro dia uma mulher me perguntou, “como se cuida de um cabelo desse
pelo amor de deus”, eu com toda a paciência, respondi: “como se cuida de
qualquer tipo de cabelo, lavando, secando...” devo ter falado algo a mais, mas
não lembro ou não quero lembrar, às vezes nossas grosserias nos tiram a razão. Quando
se permitem, tocam, elogiam, e eu gosto, é tão gostoso receber carinho nos
dreads.
Os mais “engraçadinhos” são os
adolescentes, é só olhar pra minha cara e começam a rir, eu rio também,
desaguo, dou gargalhadas, eles se assustam, até que param, depois o olhar é
sério, como se falasse, “por quê?”, “pra que?”, e quando se aproximam mais, me
tratam com carisma, devem me achar descolada.
Ser “diferente” no seu
bairro, na sua rua, na sua casa, é muito mais agressivo, não tem perdão, a fala
é na lata, e não tá nem aí para a estética negra ou pro movimento negro e muito
menos querem saber quem foi Bob Marley. Sempre me pergunto: Quando nós vamos
nos enxergar como próximos de fato? Por vezes, penso que tudo relativo à questão
racial envolvendo a estética é só utopia. Se eu chegar pra uma menina da minha
rua, ela com certeza vai dizer pra mim que estética negra (isso se ela se achar
negra) é chapinha no cabelo. Os motivos? Diversos: “porque não precisa lavar
todo dia”, “porque não gasta tanto”, “porque é mais prático” entre vários
outros argumentos.
Usando
dread percebi que os custos com uma progressiva, por exemplo, são os mesmos,
mas é muito mais fácil fazer o que está imposto do que quebrar padrões, até
porque questão de pele não é discutível, se eu sou menos pigmentada na favela,
eu sou branca e a retinta é morena e por aí vai. Não basta fazer passagens
dizendo que o cabelo crespo é lindo, o trabalho começa em casa e devia ser
ampliado nas escolas e infelizmente não é o que vejo.
Uma vez, na escola que
estudei, um professor de ciência teve a pachorra de dizer que “o Bob Marley
tinha mais de mil tipos de piolhos nos cabelos, e que isso afetou o cérebro que
gerou a doença que ele teve e por isso ele morreu”. Como pode? Um professor!
Ele não sabia o que estava falando, lógico, mas às vezes passando por escolas,
percebo que os professores são os mesmos e suas metodologias também, isso é
muito triste.
Andando nas ruas, vejo
quanto o diferente, que deveria ser comum, é rechaçado, e os trabalhos de base
são uma gota no oceano. Hoje, numa escola do bairro, perguntei se alguém
conhecia Martin Luther King, o que era discriminação, ninguém soube me dizer
nada, nem os professores, perguntei sobre Racionais Mcs todos levantaram as
mãos dizendo é “Nóis, aí sim”, mas quando perguntei se prestavam atenção de
fato nas letras, ficaram em silencio, falei o trecho de uma, e perguntei se
alguém já tinha prestado atenção que o Mano Brown citava Luther King, Malcolm
X, Zumbi dos Palmares, dava pra ouvir os grilos de tanto silencio. Na mesma
escola, sempre que passo ouço os alunos gritarem das salas de aula “Bob Marley!”.
Nossas referencias são
piadas? E se tornaram por quê?
Quando temos uma história
elas são distorcidas e o pior: nós acreditamos nas distorções. Não me importo!
Podem chamar de Bob Marley, mas ficaria muito mais feliz se a comparação fosse uma
exaltação, mas mesmo com as tentativas de depreciação, encaro sim como uma
exaltação as minhas raízes, uma exaltação!
2 comentários:
A luta continua, seu texto é meu texto, fui me lendo a cada paragrafo. Acredito que a força de carregar os dreads. Abraços.
Elizandra Souza
Sumemo mulé, nunca é pouco trançar mais uma reflexão dessas, nunca é bastante. Todo dia tem estilingada em sala de aula, e tem alunas e alunos meus quebrando espelho a rodo.
Beijo grande, Carolzinha.
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