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sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Mané de Lima Barreto. (Crônicas de um Peladeiro) por Michel Yakini





Muitos acreditam que a mentira só deixa de ser imoral, e fora de julgamentos, na excelência dos escribas, mas no futebol a mentira é camisa dez, há tempos, decide, dita o ritmo da peleja, no vai não vai, fez que foi mas não foi, no da vaca, na pedalada, no chapéu, na paradinha, no rolinho. Se você aprecia literatura e futebol, ou pelo menos uma das artes, sabe que tem um bom gosto por mentiras.
Não há nada mais mentiroso que um drible, o momento mais poesia da bola. O drible é um concreto fingimento, uma enganação. Todo driblador é imoral, cafajeste, sangue frio, não tem piedade de quem mal conhece, como fazia Mané Garrincha com seus Joões.
Na literatura, a mentira também é tempero essencial. Mesmo quando os livros nos envolvem em fatos reais, o escritor, malicioso como um atacante, nos transporta ao seu mundo pela mentira.
Acreditamos em suas palavras, imagens, cores, rostos, criados pela mágica da engabelação, ou será que Castelo seria contratado como professor de javanês, sem saber nada de nada, pelo Barão de Jacuecanga, se não fosse pelo um-sete-um perspicaz de Lima Barreto?
O que dizer do pandemônio que virou a pacata Tubiacanga, uma cidade revirando defuntos e se matando para desvendar o segredo do ouro de Raimundo Flamel, um dos maiores dribles da literatura brasileira, como a jogada clássica de Mané na ponta direita, que desnorteou os gringos em 62 e o coroou como melhor na Copa do Chile, sem que nenhum João desentortasse seus segredos, uma história canônica, como é A Nova Califórnia.
Na bola e na página a mentira é uma entidade, muito além do mundo dos mortais. Para deixar de ser Manuel Francisco e se tornar Mané Garrincha, ir de um simples Afonso Henriques a um célebre Lima Barreto, é preciso, antes de tudo, ser um mentiroso de alma.
Na bola e na página a mentira não requer técnica, simplesmente, pois senão os melhores mentirosos teriam sucesso garantido ao se matricularem nas escolinhas de futebol ou nos cursos de criação literária. Para ser um mentiroso imortal é preciso poetar com bola, é preciso driblar com a caneta.
Na página, o leitor é como um torcedor fanático, e deve estar de alma aberta pra sentir as mentiras que os escritores pregam com as palavras, pois todo torcedor e todo leitor gosta mesmo é de sentir mentiras que valem à pena, daquelas que depois de um gol ou ao fim de um romance, dizemos: “Essa sim é uma verdadeira mentira!”.
Ninguém gosta daquele zero a zero truncado, sem chute a gol, com uma falta a cada dez segundo, dá sono, é como um livro mal escrito, que a gente larga no meio e deixa esquecido, o jogo se apaga da memória e o livro se cobre de poeira. 
Os boleiros, assim como os escritores, aplicam sua magia com a caneta, um debaixo das pernas de um João qualquer, o outro costurando palavras até marcar um gol antológico, em ambos os casos é preciso fôlego e uma boa estratégia.
Os mais experientes ensinam que nas pelejas, quem corre não é o jogador, é a bola, e nas letras as histórias fluem com vida própria, não se deve aprisioná-las em cercados.
Lima era prosador ousado como um ponta, craque com as letras. Garrincha mal sabia ler, assinou até contrato em branco, mas escrevia poesias com as pernas tortas. Mané, provavelmente, não gostava de literatura, assim como Lima odiava football. Se os dois se encontrassem para tomar um trago, sofrimento em excesso da dupla, talvez que daria uma boa tabelinha, uma pena, por pouco não foram contemporâneos.
Mané foi o Lima da bola e Lima o Garrincha da página, se tornaram imortais, por serem sacerdotes de mentiras sagradas em seus ofícios, mas em vida foram injustiçados e por pouco não ficaram no limbo, esquecidos como um mentira mal contada.


Um comentário:

SERGIO BALLOUK disse...

Tô acompanhando com prazer suas crônicas e pensando como o futebol dá assunto. Quem mora no "país do futebol" inevitavelmente vai falar dessa arte uma hora ou outra. Exageradamente como muitos. Para alguns é o primeiro assunto, outros é o que mantem a conversa amistosa, ou acaba de vez. E mesmo aquele que não gosta vai falar. É quase religião. O crente e o ateu falam em Deus, a partir de suas percepções. Com o futebol é a mesma coisa. Essa do mentiroso X Lima X Garrincha foi muito saborosa. Estou aqui lendo Clara dos Anjos e me enredando com as artimanhas do escritor em desenvolver o Vilão Cassi, um violeiro de modas arrebatador de donzelas. O livro segue assim como as suas crônicas, espaçadas dentro do tempo mas unidas em temática e sensação de continuidade temporal. Lima Clara dos Anjos, e outros, foram apresentados ao público em periódico da época, maestralmente dosados texto, interesse, prazer, curiosidade, nem mais, nem menos. Assim seguem as crônicas de um peladeiro, acima de tudo, está o prazer de escrever.