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segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

SAUDADE COM FAROFA por Michel da Silva


No verão do ano passado, minha irmã estava de férias e alugou um kitnet de um amigo dela pra ficar alguns dias na Praia Grande. No ultimo final de semana eu colei lá com a minha esposa e ficamos junto com ela, meu cunhado e minha mãe. Meu cunhado estava de carro e resolvemos visitar uma praia no Guarujá. Um lugar bem bonito, acesso pra poucas pessoas, pois não havia ônibus ao redor e só casas do tipo mansão, por isso que muitos dizem que as praias do litoral norte são mais bonitas e limpas, o acesso é elitizado. Chegamos lá de boa, com um isopor com cerveja e refri, ficamos a tarde inteira na praia, fiz um rolê num morro coberto pela Mata Atlântica, que parecia o Pico do Jaraguá e fomos embora bem contentes, parece até estranho, né? Ir ao território dos boys, apesar da praia ser pública, e não acontecer nada de anormal. Abraça!

Entramos no carro do meu cunhado, um Apollo noventa e pouco, e quando estávamos a uns cinqüenta metros da praia o carro parou. Muitas tentativas de partida e nada. Empurra pra frente, pra trás e nada. Rua deserta, praia vazia, domingo à tarde, sem mecânica, sem saída. Do nada um carro importado surge na rua, era uma senhora com um cachorrinho, do tipo poodle. Quando o carro passou, lati pro cachorro dela, só pra zuar, de forma bem aguda e seca. O carro seguiu até a entrada da praia. Pensamos em pedir ajuda àquela senhora, para carregar nossa bateria com a famosa “chupeta”. Fomos em direção da mulher, mas quando estávamos quase chegando, ela se assustou e saiu correndo, literalmente, com o cachorrinho pra dentro do carro. Percebemos que ela ficou com medo, por causa do nosso estereótipo, que não tem nada haver com os moradores dali, coisa da cultura do medo. Mesmo assim pedimos ajuda. Meio intrigada ela prometeu encostar seu carro perto do nosso. Só aceitou depois que o vigia do local, que estava numa moto, lhe disse que já estávamos lá por algum tempo e que emprestaria o cabo da bateria, senão...

A mulher parou perto do carro e como ainda estava meio longe, pedimos que ela encostasse mais. Ela saiu do carro de uma forma estranha e disse:

- Olha pede pra outra pessoa que eu não vou poder esperar! Se fosse mais rápido, mais ainda tem que manobrar !? – Foi embora sem maiores explicações.
Ficamos boquiabertos coma atitude daquela mulher, ela deixou o medo superar a solidariedade. Nos deixou sozinhos, quase escurecendo, com duas crianças e um carro parado. Pensamos em deixar o carro lá e procurar um ônibus para voltar, mas ainda resolvemos arriscar em pedir ajuda em algumas casas. Na primeira casa ninguém atendeu. Na segunda um senhor também demonstrou pressa. Na terceira alguém respondeu, mas gritou pro meu cunhado de dentro da mansão:

- Aparece no meio da rua, para eu poder te ver e diz o que você quer!

Por sorte o vigia já interveio e explicou à situação, dois caras vieram ajudar com um jipe daqueles de rali e finalmente conseguimos recarregar a bateria e dar partida no carro. Os caras que ajudaram, foram embora rapidamente. O vigia, que fez a maior correria, também queria sair fora, mas antes nós resolvemos dar uma grana pela ajuda dele, porque o cara deixou o seu trabalho pra nos ajudar, nada mais justo! Pra ver... Ele ainda não queria aceitar.

No caminho de volta ficamos comentando sobre o acontecido, reconhecendo que no final das contas a nossa ajuda partiu da pessoa mais humilde, que não nos olhou com medo e desconfiança e fomos se lembrando de outras situações semelhantes, que cada um já havia passado. Chegamos à conclusão que quanto mais poder e grana uma pessoa tem, menos solidária ela é.

Minha irmã ficou indignada, revoltada com o desdém das pessoas. Mas ela pensa que pra não passar por isso é necessário conquistar o seu e não depender deles. Eu já pensei diferente, vi o quanto á sociedade burguesa é preconceituosa, mais uma vez, e individualista, parece que vivem no mundo maravilhoso, mas tem medo da própria sombra e não gostam de ajudar ninguém, querem mais é que o próximo se f... E se quisermos ser como eles, vamos praticar os mesmos atos. Guardei comigo o exemplo do vigia, que se identificou com a gente, já deve ter passado o mesmo veneno e já foi ajudado um dia também, deixou mó ensinamento.

Lembrei do tempo em que a gente só viajava pra praia quando acontecia uma excursão de terreiro em época das festividades de Iemanjá, a rainha do mar. Era uma movimentação só na vila, atrás de passagem. A gente preparava as comidas em casa e levava tudo dentro do ônibus, tudo mundo dividia o que tinha, sem problema. Éramos os chamados “farofeiros”, por que a comida mais comum entre nós era frango com farofa. Dentro do ônibus, durante toda viajem as cantigas, de Umbanda e Candomblé, eram acompanhadas pelos atabaques. Quando chegávamos a Praia Grande, próximo da imagem de Iemanjá, encontrávamos muitos ônibus vindos de vários lugares do Brasil. Na areia da praia eram construídos diversos terreiros, cercados com cordas e folhagens. As oferendas eram deixadas no mar. Era parecido com as práticas dos terreiros da vila, mas a beleza era diferente, a proximidade com a natureza deixava outro clima no ar. A vestimenta dos praticantes tinha tudo haver com nossa ancestralidade. Era uma grande celebração da nossa matriz africana. Começava de manhãzinha e ai até o final da tarde. Sem contar que era um momento de lazer e a oportunidade de muitos em ver o mar pela primeira vez.

Como era festa de preto e não movimentava a economia local como o esperado, a prefeitura alegou que a poluição estava prejudicando o ambiente e começou a proibir nossas práticas na praia, inclusive as excursões. Essa justificativa não colou, pois poluição na praia no fim de ano é de dar nojo, mas como é para o consumismo da festa cristã, do ano novo e do carnaval, não há problemas.

Pena que sempre quem determina nosso acesso ao lazer, ao divertimento e até as práticas religiosas são aqueles que mandam nas cidades, ou seja, os mesmos burgueses que ficam em praias exclusivas no Guarujás e Ubatubas da vida. Quem sabe um dia isso muda e não fique somente na lembrança. Era uma tradição que passava de pai pra filho e de repente acabou.

Esse tempo, com certeza, deixou saudade e como deixou. Hoje sempre que vou fazer um “bate-volta” na praia coma minha esposa é na inspiração dessas excursões, mas hoje não há nenhum sentido religioso, pois a massificação das nossas raízes reflete nisso também, infelizmente. Muitos podem se esquecer ou deixar uma lembrança negativa sobre nós, mas se esqueceram tanto da gente, que não se lembraram de nos tirar o papel e a caneta e assim contamos, escrevemos e eternizamos a outra versão da história.

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