O PEQUENO REI VIRA - LATA
Todas as tardes, lá estava ele. Longe dos outros, o garoto se sentava na sombra do arvoredo, com as costas contra o tronco de uma árvore e a cabeça inclinada. Os dedos de sua mão direita dançavam debaixo do seu queixo, dançavam sem parar como se ele estivesse coçando o peito com uma incontida alegria, e ao mesmo tempo sua mão esquerda, suspensa no ar, se abria e fechava em pulsações rápidas. Os outros tinham aceitado, sem perguntas, o hábito.
O cão se sentava, sobre as patas de trás, ao seu lado. E ali ficavam até a chegada da noite. O cão paralisava as orelhas e o garoto, com a testa franzida atrás da cortina de cabelos sem cor, dava liberdade aos seus dedos para que se movessem no ar. Os dedos estavam livres e vivos, vibrando na altura de seu peito, e das pontas dos dedos nascia o rumor do vento entre os galhos dos eucaliptos e o repicar da chuva nos telhados, nasciam as vozes das lavadeiras no rio e o bater das asas dos passarinhos que voavam, ao meio-dia, com os bicos abertos pela sede. Às vezes, dos dedos brotava, de puro entusiasmo, um galope de cavalos; os cavalos vinham galopando pela terra, o ruído dos cascos sobre as colinas, e os dedos se enlouqueciam na celebração. O ar cheirava a miosótis e ervilha-de-cheiro.
Um dia, os outros deram-lhe de presente um violão. O garoto acariciou a madeira da caixa, lustrosa e boa de se tocar, e as seis cordas ao longo do diapasão. E ele pensou: que sorte. Pensou: agora, tenho dois.
Eduardo Galeano (Montevidéu, 3 de setembro de 1940) é jornalista e escritor. É autor de mais de quarenta livros, que já foram traduzidos em diversos idiomas.
Galeano iniciou sua carreira jornalística no início da década de 1960 como editor do Marcha, influente jornal semanal que tinha como contribuidores Mario Vargas Llosa e Mario Benedetti. Foi também editor do diário Época e editor-chefe do jornal universitário por dois anos. Em 1971 escreveu sua obra-prima As Veias Abertas da América Latina.
Em 1973, com o golpe militar do Uruguai, Galeano é preso e mais tarde forçado a se exilar na Argentina, onde lançou Crisis, uma revista sobre cultura. Em 1976, com o sangrento golpe militar liderado pelo general Jorge Videla, tem seu nome colocado na lista dos esquadrões de morte e, temendo por sua vida, exila-se na Espanha, onde deu início à trilogia Memória do Fogo. Em 1985, com a redemocratização de seu país, Galeano retornou a Montevidéu, onde vive ate hoje.
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