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quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Sarau nosso de cada dia (por Michel Yakini)


Algumas pessoas que conversamos recentemente já estão sabendo, mas como a maioria ainda não, seguem as novidades: Em 2013 o Sarau Elo da Corrente será mensal. Ainda não sabemos qual semana do mês, mas é certo que os encontros continuaram acontecendo às quintas-feiras, no bar do Santista. Outro projeto nosso, a editora Elo da Corrente Edições, não fará mais nenhuma publicação e encerra seu ciclo de contribuições.

Durante esse ano, refletimos muitos sobre nossa caminhada, as conquistas, as escorregadas e pra onde queremos seguir. São quase 6 anos bem intensos, organizando as rodas de poesia (entre o bar e outros espaços foram mais de 300), publicando livros independentes (foram 14 livros e 23 autores) e como acreditamos que é bom presar pela qualidade, ante a numerologia tão tentadora, vamos continuar na fortaleza de sempre, mas re-significando alguns artefatos, fortalecendo outros e buscando os caminhos escancarados em nossa atenção.

Nossa atuação nunca teve um objetivo único ou um fim primordial, até porque nada começou com o sarau, esse é o maior estopim de toda colheita e espinhos de agora, mesmo nos tempos da rádio comunitária, dos fanzines, dos eventos de rua, a intenção maior era intervir no nosso quintal, em Pirituba, berço de aprendizagens e acolhida de sentimentos, pra ouvir e ver os sons, as vozes, as cores, a imagens que estavam e sempre estiveram aqui, mas castigava com saudade e danava em não aparecer.

A literatura passou a ser o mote maior de todo esse vulcão adormecido e hoje está aí quente e vivo pelas ruas do bairro. Há um reconhecimento positivo sobre o sarau, de quem participa e é protagonista, seja escrevendo, lendo, ouvindo, alguns levando como compromisso sagrado, outros em doses repentinas, outros atrás dos postes, há quem tenha o privilégio, ou passe raiva, de ouvir poesia dentro de casa (nunca houve reclamação).  Agora, mesmo a gente morando há muito tempo na vila ou desde sempre, recebemos um batismo, ou melhor, dois e muitas vezes na vizinhança somos chamados de Poetas ou até mesmo de Sarau. Viu alguém com livro na mão, viu com instrumento de percussão, viu declamando no bar do Santista, ouve-se logo: “E aí Sarau?”. “Ô do Sarau!”. “Salve Poeta!”.

Esses dias mesmo, domingão pós-ressaca da eleição, a rapaziada se reuniu do outro lado da rua, em frente ao bar do Santista e começou, como de costume, a improvisar um samba, na batida da garrafa, na palma da mão, e entre uma Ivone Lara, um Zeca, eis que ouço dentro da minha casa um verso da intimidade, quando espiei pra ouvir, os nêgo véio tavam  cantando o Tambor da Brasa, e o “Tambor... Tambor... vai buscar quem mora longe...”, já é repertório que extrapola nosso abre alas de adoção.

Os livros também. Ainda não vemos as pessoas lendo pelas esquinas, seria lindo, pois a oralidade é rainha, que assim seja, mas onde os livros são os principais protagonistas, ou pelo menos deveriam, não foram poucas às vezes em fomos chamados em reuniões urgentes pra testemunhar a traquinagem dos estudantes com nossas publicações: homenageando autores, realizando saraus da escola, nos entrevistando, fazendo mural na biblioteca, peça de teatro... ou mesmo pelos leitores das estantes que ficam no bar do Santista e no Espaço Cultural, que sempre emprestam as obras, devolvem, quando não, trazem outras e já nem se preocupamos muito com essa cartada, a não ser a de continuar somando na organização e acompanhando cada degrau.

O Espaço Cultural mesmo, não foi um sonho dado, é um presente dessa história, e tá se firmando a cada dia no imaginário da vizinhança, seja de quem faz capoeira, a maioria mulecada, nas oficinas de artesanato e artes visuais, que agora estão chegando umas senhoras, muitas já costuram e fazem outras artes, e esse é um forte equilíbrio que vamos manter. A demanda aumentou, mas ainda somos poucos pra tocar o bonde, ninguém vive só o Coletivo Elo da Corrente. Cada indivíduo que soma aqui chegou pra também alimentar e buscar setas pros seus sonhos pessoais, até porque tudo exige mais estudo, preparação, concentração, amplia e surgem possibilidades além daqui, também somos pais, mães, filhos e irmãos e tudo tá ornadinho, juntinho. Almejar transformações, (r)evoluções e outros “ões” sem ter o dom de olhar a si mesmo e nossas casas pode ser um estilhaço no próprio espelho.

Por isso se tiver uma ou mil edições, o sarau, os livros e até o espaço, já tem um calejo consolidado e caminham naturalmente, já é uma realidade. Como se diz, a boca pequena, o mais difícil não é chegar, é manter, e antes que alguém caia pelo caminho por excessos o melhor é cuidar do eficaz, do que fundamenta antes de empolgar. Com a dinâmica atual, mal conseguimos visitar as iniciativas parceiras, principalmente os saraus e essa troca de energia é combustível, por conta do mais a gente ficou menos e sente falta de quem não pode vir aqui também (seja na opção ou na falta dela). Essa cena alimenta mais quem participa e não quem a gente idealiza, se fosse assim cada sarau, cada espaço iria estar lotado de pessoas de cada comunidade e na real é um bairro injetando força no outro, o que já deixa um legado fera. Tem gente que só bota fé no que acontece na sua porta se um “estranho” prestigiar, vai entender, “santo de casa...”. 

Outra coisa: livros e saraus não são mais a urgência do dia, tem bastante e que bom que é assim. O perigo é não perceber que mesmo não tendo um movimento organizado (somos um movimento de literatura ou uma cena de saraus?),  pois foi assim que floriu, pouco a gente se reúne (além de evento e debate de 1 hora) pra pensar esse caldeirão, trocar experiências, conhecer as diferenças as parecenças (sem analisar qual pulso ergue mais alto) ou mesmo mergulhar nas entranhas da oralidade, escrita, leitura, da intervenção social que tanto nos é peculiar, amadurecer (auto) crítica, resenhar as obras, ser lido antes de publicar, ler e produzir com a mesma atenção as prosas (principalmente os romances por ser o gênero mais inalgemável), mastigar o que é denominado cânone e fibrar nosso chão, sem medo de ser o outro ou se achar autossustentável. 

Basta ver os exemplos de literaturas tidas de guerrilha, se é que isso nos conforta, como da Nicarágua, ou as de língua portuguesa como em Moçambique e Angola e entender que a literatura desses países foram chaves na transformação de cada lugar, consolidando um sistema literário, pensando reunião sistemática de autores, pra discutir como podemos somar nas ações (editorial, critica, distribuição, continuidade, acervo, publico leitor, repercussão e atuação) tendo a literatura como ponto central para quem quer escrever literariamente (a maioria, em qualquer contexto, são leitores em potencial), ou seja, pensar formas estéticas que possam de fato mostrar nossa singularidade criativa, linguística, social e étnica, sem que seja pelo comum (pra garantir as palmas da certeza), pois nossas possibilidades de imaginário, universo e vivências são por demais complexos e não podemos apostar no simplismo como expressão, isso diminui a nossa capacidade de repertório e decifra negativamente o leitor/ouvinte antes mesmo dele dar vida, sentido e criação conjunta aos nossos escritos/récitas.

Ainda assim, permanece o risco da desconfiança, que muitos ainda têm, da chamada “arte pela arte”, mas aprofundando iremos perceber que a literatura sempre foi e continuará sendo um ponto dos mais importantes em qualquer projeto político nacional, pois marca a identidade, a língua, formação cultural e fortalece ações emancipatórias e de reconhecimento das diversidades, isso aconteceu nos países da Europa (colonizadores) e aconteceu/acontece em lutas de libertação nacional, como nos já citados Angola e Moçambique. E que medo será esse que às vezes nós temos da arte? Não queremos exercer liberdade? Outro mundo possível? Será que a couraça de cabresto, do discurso previsível, mas acalorado, da litera-bula ainda é limite?

Pensando nessas entrelinhas que vamos alterar os rumos por aqui, a programação do ano que vem está quase pronta e mesmo sendo mensal, vamos manter a mesma fervura, realizar homenagens a alguns autores e autoras, pra aprofundar suas biografias e produções, os encontros de formação e discussão, além das oficinas no Espaço Cultural. Ainda iremos concluir os últimos saraus de 2012, mas desde já projetando o futuro e tecendo aquilo que nos mantêm de cabeça erguida e em movimento.

Axé sempre!!!

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