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terça-feira, 18 de março de 2014

A Terra de um beijo só. (Por Michel Yakini)



            É uma sinuca de bico os vícios regionais que a gente tem. Quando vou ao RJ, DF, ou algum lugar do nordeste, ou mesmo, quando encontro essa gente na minha aldeia, me distraio no cumprimento e deixo escapulir o vácuo do beijo único no rosto delas.

            Elas adivinham da onde a gente vem, só pela forma de cumprimentar. Como não sou um estereótipo sulista (que carrega o mito da frieza) e apesar da cara de caboclinho retirante, normalmente elas me dizem: Você é de São Paulo, né?

            Fico envergonhado, peço desculpas, beijo atrasado, falo alto pra lembrar que é dois, mas o que mais me dói é saber que minha geração carrega o afeto dos três beijinhos e pelos ranços da vida esse costume sumiu e agora mora na rede fria e paulistana do beijo único. Fiquei pensando o quanto o costume de um beijo só pode ser determinante pra definir meu lugar, e cheguei na conclusão que essa é uma navalha afiada.

            Quando pequeno lembro que toda visita familiar era digna de dar e receber os três beijinhos, seja no rosto fofo da Tia Bete, no beijo-saudade da Tia Célia, que vinha do interior, e nas queridas primas e avós. Nas paquerinhas de escola, a gente conhecia as meninas sob o ritual dos três beijinhos. O cúmplice mais próximo dizia os respectivos nomes e o casal trocava esse carinho, mesmo sem consenso.

            Às vezes pairava um silêncio e cada um ia prum lado, em outras alguém puxava uma conversa fiada a contra gosto e nos dias de céu colorido os ficantes e futuros namorados brilhavam nas vielas ao redor. Assim foi na minha tremedeira com Anita, no namorinho com Samanta, quando fiquei com Bia (essa era linda, desacreditei...), na falta de papo com Andréia, no beijo-paralisia de Rosangela e na tabelinha redonda com a Cris. Ah, tempo bom...

              Aos poucos, a fonte dos três beijinhos foi secando... secando... e tudo ficou tipicamente paulistano: empedrado!

            Não sei se esse lance dos três beijinhos era uma cultura de quebrada, porque na época Pirituba era meu gueto e o centro de SP se chamava "cidade". Se tem haver com frieza, individualismo, tecnologia, ou, se não existe amor em SP, é difícil dizer.

            Ainda se beija muito por aqui, isso é fato, há carência e carícias se esbarrando aos montes pelas esquinas. Mas quanto será que nosso beijinho xoxo, pesa na intensidade dos amassos, e nas quenturas da paulicéia? Se carinho é troca e beijo bom é aquele dado e recebido, onde mora o tom do mono-beijo paulistano? 

            Que nem todo mundo é digno de receber a energia dos nossos beijos, concordo, mas toda vez que a maçã do meu rosto ganha ou dá um sopapo fantasiado de beijo, fico na nostalgia dos três beijinhos, volto pra paquera na porta da escola, pros abraços nas tias e primas queridas e me vejo mais duro, com a magia capenga e com a alma falhando, menos dança e mais desengano.

            Me sinto tão sem graça quanto esse beijo seco e de cara virada que agora reina nos cumprimentos da minha terra. 

www.michelyakini.com

2 comentários:

Van disse...

Parabéns pelo texto, voltei no tempo!!! Um forte abraço pra você, pra Raquel e pra Yakini de toda: Família Du_Bod!

LiteraturAndante disse...

Valeu Van, túnel do tempo da nossa geração. abraços recebidos. Abraço na Familia Du Bod!

Michel Yakini