Tradutor

domingo, 17 de junho de 2007

TENTAÇÃO por Michel da Silva (Conto lido no Sarau Elo da Corrente)

Quando aquele enorme portão de ferro se abriu, a emoção tomou conta do meu coração. Coloquei os meus pés na calçada, com muito gosto. Nunca valorizei tanto pisar numa simples calçada à beira da rua. Mas aquela não era uma rua qualquer, não era uma calçada qualquer. Pois pisar naquele solo e ver aquela rua de perto, era o desejo diário de mais de quatro mil homens. Eu era apenas um desses quatro mil, um privilegiado de concretizar meu desejo.
Eu ouvi o barulho seco da tranca e nem quis virar pra ver o portão se fechar. Dessa vez senti até um alivio ao ouvir aquele portão se fechar sem eu ter que estar pro lado de dentro. Chorei muito, minha lágrima parecia estar acumulada, eu não conseguia me controlar como antes. Quando percebi que minha esposa me esperava ali, sentada naquela calçada, fui direto ao encontro dela. Com os olhos cheios de lágrimas, eu desabei nos seus braços. Minha camiseta ficou umedecida pelo choro dela. Eu não me contive. Era a primeira vez, em cinco anos, que eu não estava preocupado em segurar minhas emoções na frente da Fernanda. Pois naquele dia eu não a deixaria de coração apertado, tendo que ir embora sozinha, após a visita, cheia de preocupações.
Ela nunca soube das minhas recaídas, da minha tristeza contida, do meu medo, dos meus desacertos. Mas naquele dia eu me deixei levar, em silencio, em lagrimas. Eu me sentia entre a angustia e a dor do passado, a alegria do presente e as incertezas do futuro. Estava indo de volta pra minha casa. Eu sobrevivi ao sistema carcerário. Pensei varias vezes que não ia conseguir, mas estou de pé e livre para caminhar além dos muros e corredores da prisão.
Minha esposa e eu fomos embora, pegamos o metrô e depois o ônibus, e seguimos rumo a nossa casa. Eu olhava a cidade pela janela do ônibus e achava tudo fora do comum. A paisagem urbana me parecia esquisita. Os lugares por onde eu estava acostumado a passar durante toda minha vida, parecia, em alguns momentos, locais onde nunca estive antes. As pessoas me eram estranhas, a forma como elas se vestiam, seu jeito de falar. O ar que eu respirava não era mais o mesmo, tinha cheiro de liberdade.
Estava me sentindo assim porque o único contato que eu tive com esse mundo, durante o tempo que paguei minha pena, foi através da ventana da cela ou quando eu conseguia olhar o movimento, escondido do policial que ficava pronto pra me bater, enquanto eu entrava em algum camburão ao sair de bonde de delegacias, penitenciárias e nas minhas idas ao fórum. Durante esse período, eu não ouvia outra linguagem, a não ser a gíria de cadeia ou fala culta e enigmática do sistema judiciário. Roupa comum pra mim era calça bege e camiseta branca. Mas chega, não quero mais essa vida pra mim. Quero ficar ao lado da minha família, trabalhar e evitar a parada errada. A lição foi muito dura, foi dolorosa e deixou uma marca na minha vida para sempre. Nessa seqüela, está escrito nitidamente, como num carimbo de repartição pública: “Ex-presidiário”.
Ao chegar à vila, junto com a minha esposa, observei que o lugar que me pareceu mais familiar era a rua da favela onde eu moro. Muitas crianças e adultos na rua, os butecos abertos. Muita gente conhecida, mas também muita gente que eu nunca vi antes. Conheço bem esse lugar, porque nasci aqui e sei quem é quem. O numero de casas aumentaram. Onde havia uma casa simples virou sobrado, onde não havia nada, já tem no mínimo um barraco de madeira. Também, todo mês chega uma dezena de parentes de algum morador da comunidade, vindos normalmente do nordeste. Além disso, muitas mulheres engravidam, constantemente, por aqui. E assim a favela cresce.
Ainda andando pela rua, encontrei vários manos. Alguns que só lembraram de mim, porque eu apareci na frente deles, senão, eu continuaria no esquecimento. Mas tem truta que é sangue-bom. Que eu senti que comemorou a minha volta com alegria. O Xande, por exemplo, sempre chegou trincando. Mandou até umas cartas pra mim, me ajudou a quebrar a solidão e o esquecimento. Quando eu o vi, fui especialmente cumprimenta-lo:
– E ai meu truta forte? Como ce ta?
– Oh, Carlão! Satisfação em revê-lo!
Meu irmão, o Paulo, sempre me apoiou. Além da minha mulher e o do meu filho, ele foi o único parente que me visitou na prisão. O Paulo sempre se preocupava e mesmo quando não podia ir à visita, mandava um jumbo pela Fernanda. Meu mano é um cara de responsa. Fiz questão de passar na casa dele, pra lhe dar um abraço:
– Mano! Mano!
– Fala Carlão! Que bom que ce voltou! Eu tava esperando ce chega!
– Tudo pela ordem?
– Tamô firme, negô! E na torcida pra ver você firme também!
– Firmão, vai lá em casa depois! Eu vou lá, que eu to louco pra ver o Mateus.
Antes de entrar no beco, onde foi o cenário triste da minha prisão, encontrei a Dona Josefa, uma mãe guerreira, que nem foi a minha finada mãe Dona Benedita. Que Deus a tenha. Dona Josefa tava todo domingo na penitenciária pra visitar seu filho, o Guaru, que estava preso no mesmo pavilhão que eu. Eu tinha uma carta dele pra entregar em mãos e fui cumprir a missão. Gritei no portão e logo a Dona Josefa apareceu:
– Oi, Dona Zefa, licença incomoda a senhora!
– Meu fio, Carlinhos, é você?Que bom! Eu rezo todo santo dia pra Deus protege você e o Marcos!
– A reza da senhora é forte! Eu consegui minha liberdade!
– Agora só falta o Marcos, mas se Deus se quiser...
– Fica tranqüila Dona Zefa, trouxe uma carta dele pra senhora. Depois a senhora pede pro menino dele lê! Com certeza têm boas noticias!
– Deus te ouça meu fio!
O Guaru já havia me adiantado que a condicional dele foi concedida. Ele ia ser transferido pra colônia na mesma semana. Mas eu preferi deixar a Dona Zefa saber da boa noticia, pelas palavras do seu próprio filho.
Enfim, cheguei à entrada do beco. A minha casa, eu avistei de longe, no final do corredor. Mas ao pisar ali, eu vi a cena da minha prisão passar sobre meus olhos. Desde o convite que o Andrézinho, que rodou junto comigo, me fez pra dar um “tirinho”, passando pelo momento que a barca chegou encostando a arma na nossa cabeça. Depois de pegar nosso nariz no flagrante dando fim naquela “maldita carreira branca”. A cocaína mais amarga da minha vida. Graças a Deus que foi a ultima.
O embaçado é que os policiais tinham mais papelotes escondidos na barca e depois de muito desacerto, eles resolveram forjar a gente. Já que não falamos qual era a fonte daquela farinha, nóís passamos de usuários a traficantes num passe de mágica. O que me deu mais ódio foi ver o filho da puta daquele gambé bater na minha finada mãe, na minha frente. Quando ela saiu no beco, naquela madrugada, pra impedir minha prisão, o policial deu uma coronhada na cabeça dela, que a fez cair na hora. Eu não pude fazer nada. Minha mãe ficou lá, caída no chão e eu fui levado no camburão. Marquei bem a cara daquele puto! Se trombo ele por ai, eu perco a razão!
Aquilo foi um desgosto tão grande pra minha mãe que ela acabou falecendo, alguns meses depois. A humilhação sofrida na mão daquele policial assassinou a minha mãe. Ela ficou muito doente e não suportou. O ultimo beijo que eu dei no rosto da minha mãe, infelizmente foi no velório dela. Eu estava algemado e vigiado por três policiais e depois de velar seu corpo por alguns instantes, fui levado novamente pro xilindró. Agora tenho que segui de cabeça erguida, apesar dos pesares. Era assim que minha mãe me dizia pra seguir e é assim que eu vou.
Chegando a minha casa, dei um abraço bem forte no Mateus, meu filho:
– Filhão, o pai voltou! Vem aqui e me da um abração!
– Que bom ter você aqui com a gente novamente, Pai!
Parece que tudo havia voltado ao normal, ou melhor, quase tudo. Dos meus objetivos eu consegui concretizar a maioria. Mas com o passar do tempo eu percebi que para ficar ao lado da minha família numa boa eu precisaria arrumar um emprego e ai que ta o xis da questão.
Tentei arrumar emprego em várias firmas e algumas me chamaram pra trabalhar, pois eu tinha uma boa experiência em carteira como torneiro mecânico. Mas bastava eles pedirem a relação de documentos para me contratar e lá estava escrito: Declaração de Antecedente Criminal. Daí já eras! Até tentava não enviar o documento, mas as empresas insistiam e quando viam meu antecedente, me dispensavam na hora. A justificativa era de que não podiam me contratar “devido algumas restrições na política da empresa”. Que sacanagem!
Minha esposa ficou indignada e eu desabafei com ela:
– Vê bem amor, como vou conseguir ter um ritmo de vida normal? O fato de ter no meu histórico de antecedente criminal uma passagem pela Penitenciária, me barra em qualquer emprego!
– E se a Policia te parar, Carlos, e ver você na rua sem trabalhar, já viu, né?
– É mesmo, ainda tem a Policia, que me considera um eterno suspeito e me humilha em qualquer enquadro.
– Torce pra você não leva um enquadro, então!
– Só se for! Há muita desconfiança e preconceito com um ex-presidiário, parece que ta escrito na minha testa: “sou um delinqüente!”.
O mais chato dessa situação nem é pelo fato de não conseguir um emprego. Enquanto minha mulher tiver empregada na padaria, mesmo ganhando pouco, comida não vai faltar. O ruim mesmo é ter que ficar sendo tentado pelo crime, direto e reto. Os manos me vêem parado, ex-ladrão de bom procedimento, sabem que eu tenho os meus anseios de consumo e família pra sustentar. Aí é fatal! O patrão do crime sempre aparece pra me fazer uma proposta tentadora. Até mano que chegou a ficar preso junto comigo e sabe dos meus objetivos, vem com a mesma história. Um bom dinheiro, carro, moto, poder, influência, mulheres, prazer. Tudo que eu quiser, do bom e do melhor.
Se existe pacto com o diabo, eu não sei! Até hoje, eu só ouvi falar. Mas nessas horas parece que o maligno encarna nas pessoas e vem pra te tentar. A regra é sempre a mesma: Se você aceitar o pacto, as portas do inferno estão abertas, e se depois de entrar, se você quiser sair, é lamentável! Tem que pagar caro por isso e muitas vezes com a própria alma. Tenho que ser forte, porque to ligado que esse tipo de convite vai ser feito a todo instante. Nessas horas eu me concentro, penso na minha família e no que eles esperam de mim. Minha vontade era falar pra esses “lobos tentadores”, nunca mais aparecer na minha frente, mas tenho que ser prudente. Vou ser positivo, vou resistir, pois a batalha continua e se eu fraquejar, a minha sorte estará lançada
e com certeza não será boa sorte.

Nenhum comentário: