Tradutor

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Pro alimento do verbo e do verso

A partir de hoje, até o fim desse mês, serão publicados em nosso terreiro digital uma série de textos publicados por pesquisadores/as e escritores/as, dialogando sobre temas como Literatura Periférica, Literatura Negra e Literatura de Cordel. Para abranger o acesso a produção de conhecimento, a discussão em torno da nossa pratica e a possibilidade de análise além dos textos literários. 

Começaremos com um fragmento do livro 'Vozes Marginais na Literatura" (Aeroplano, 2009), de Erica Peçanha do Nascimento, doutoranda em Antropologia Social -USP, moradora da bairro do Jaraguá e parceira de arquiteturas nossas.



Erica Peçanha do Nascimento
Foto: Marilda Borges

No trecho, Erica Peçanha dialoga com uma pesquisa de Dalcastagnè, relacionada a caracteristicas de autores que publicaram romances entre 1990 e 2004 das editoras Companhia das Letras, Record e Rocco. dialogando com o objeto de sua pesquisa, que é a Revista Literatura Marginal -Atos I,II, III (Caros Amigos/Ed.Casa Amarela, 2001, 2002, 2004 ).


"...Outra contribuição de Dalcastagnè (2005) advém da pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”, coordenada pela autora e desenvolvida por estudiosos de literatura da Universidade de Brasília. Tal investigação objetiva o mapeamento das personagens das obras publicadas no Brasil no período de 1990 a 2004, segundo as variáveis sexo, idade, classe social, cor, orientação sexual e ocupação no mercado de trabalho. O corpus da pesquisa inclui 258 romances, de 165 autores diferentes, publicadas por três editoras brasileiras de prestígio, a Companhia das Letras, a Record e a Rocco.


O foco do trabalho são os personagens das obras estudadas, porém a sistematização dos primeiros dados revelou também algumas características dos autores que fazem parte do rol das editoras pesquisadas: 75% são homens, 93,9% são brancos e 78% possuem o ensino superior completo, de modo que Dalcastagnè (2005) destaca: “os números indicam com clareza o perfil do escritor brasileiro. Ele é homem, branco, aproximando-se ou já entrando na meia idade, com diploma superior e morando no eixo Rio-São Paulo” (p.33). Quanto aos personagens, houve predominância de homens (62,1%), heterossexuais (81%), membros da classe média (51,4%) e brancos (79,8%) – porcentagem também aumentada quando se trata dos protagonistas (84,5%).

A principal síntese que Dalcastagnè (2005) elaborou a partir desses primeiros dados é que, tanto no que diz respeito aos personagens quanto no que se refere aos escritores, é muito pequena a participação de negros e pobres na literatura brasileira. Nesse sentido, o ponto central para essa discussão é a ideia de “representação”: um termo importante para pensar como os grupos marginais aparecem nas obras literárias, assim como para discutir a inserção de membros desses grupos como sujeitos do processo simbólico, ligando-se, neste último caso, à ideia de “representatividade” dos variados perfis sociológicos no conjunto de produtores literários. Daí a importância de se problematizar o próprio rebatimento da arte no debate público quando há algum tipo de rompimento do monopólio das camadas altas como produtora de literatura, tal como ocorreu com a entrada em cena dos escritores da periferia.

É possível somar a esse argumento que, tendo sido produzidas no período contemplado pela pesquisa sobre o romance brasileiro contemporâneo, os textos das edições Caros Amigos/ Literatura Marginal contribuem para diversificar o discurso literário ao ampliar o número de personagens pobres e negros nos textos. Já que uma das particularidades apresentadas pelas edições especiais é o uso da literatura como recriação, no plano cultural, do que é peculiar aos espaços e sujeitos marginais. Desse modo:


Tratando de espaços não valorizados socialmente como a periferia dos grandes centros urbanos, ou os enclaves murados em seu interior, como as prisões, os textos vêm conseguindo visibilidade na mídia, êxito perante parte importante da crítica e reconhecimento dentro do campo literário e cultural, provocando debates sobre sua legitimidade, enquanto expressão de um sujeito social até então sem voz, ou mesmo sobre a possibilidade de uma nova vertente temática e estilística, correspondente à matéria que traduzem (Pellegrini, 2004, p.15).

Com base nas entrevistas realizadas para esta pesquisa, cabe refletir, ainda, sobre a diversificação de perfis sociológicos dos escritores brasileiros com a publicação das edições Caros Amigos/ Literatura Marginal. Pois, ainda que se mantenham algumas características similares às apontadas por Dalcastagnè (2005), no que se refere à predominância de homens e de moradores do eixo Rio-São Paulo em todas edições, há alguns dados destoantes, principalmente no que diz respeito à cor/ raça dos autores participantes e à escolaridade, visto que 75% dos entrevistados se autodeclaram negros (pretos e pardos) e 58,3% têm apenas o ensino médio completo. Considero relevante realçar, novamente, que dentre os escritores entrevistados, 66,6% freqüentaram apenas escolas públicas, 66,6% residem em bairros da periferia paulistana, 91,6% têm pais que exerciam atividades profissionais de baixa especialização ou baixo status social (como padeiro, ajudante de produção, servente de pedreiro, carregador de frutas e lavrador) e somente 33% deles já haviam publicado algum livro antes da participação nas revistas de literatura marginal.

Para além dos dados coletados nas entrevistas, ao reafirmar suas características biográficas e socioeconômicas nos textos e nos minicurrículos veiculados nas edições de literatura marginal da revista Caros Amigos, os escritores da periferia não somente reportam o leitor ao entendimento da relação direta entre experiência social e produto literário, mas reforçam uma identidade social, artística e cultural. Sendo assim:

É esse o dado inédito que se coloca, permitida a paráfrase, quando novos personagens entram em cena. Dado que precisa ser entendido, então, como sinal evidente da emergência recente de um movimento que aglutina sujeitos de tribos e de galeras que, munidos da tecnologia da palavra, embora seu domínio seja muito diferenciado, começam a traçar seus signos para dar vazão a energias criadoras cuja fonte inspiradora é, de maneira preferencial, a própria experiência de sobreviver nos espaços marginais e marginalizados da sociedade nacional. É o que explica o fato de o movimento ser integrado por autores que, em virtude da sua origem ou condição social, se apresentam como favelados, ex-presidiários, membros de comunidades de bairros ou de pescadores, grafiteiros, enfim como seres integrados no cotidiano violento ou miserável do nada glamouroso mundo periférico (Eslava, 2004, 39-40).

De acordo com Rocha (2004), boa parte da produção dos escritores da periferia e dos rappers se caracteriza por um esforço de interpretar os mecanismos de marginalização social e de permitir que nas periferias e favelas grupos se multipliquem para produzir a definição da própria imagem. Segundo o autor, essa produção pode ser lida na chave da “dialética da marginalidade”: um modelo interpretativo que pressupõe uma nova forma de relacionamento entre as classes sociais e onde as diferenças são evidenciadas, numa recusa “a improvável promessa de meio-termo entre o pequeno círculo dos donos do poder e o crescente universo dos excluídos” (p. 8).

E como justifica Antonio Candido (1989), nas sociedades em que existe algum esforço de combate às desigualdades sociais e econômicas, a fruição da arte e da literatura assume um caráter duplamente importante no que diz respeito à promoção dos direitos humanos. Primeiramente, por conta do caráter humanizador da literatura enquanto construção catalisadora de emoções, conhecimento, valores, mensagens éticas e políticas, e que se faz, portanto, um direito fundamental, tal como a alimentação, a moradia, a liberdade individual, a saúde, etc. Depois, por causa do papel social que determinadas obras literárias assumem ao denunciar, em termos esteticamente válidos, situações de miséria, exploração econômica e marginalidade social; inserindo seus autores como figurantes da luta contra a negação ou restrição dos direitos.

O primeiro ponto evidenciado por Candido (1989) está ligado não apenas às estratégias que permitam o acesso de todos os grupos sociais à literatura, mas também à universalização das ferramentas principais que permitam fruí-la, como o conhecimento da leitura e da escrita. Já a segunda questão se relaciona com os ecos dos produtos artísticos no debate público, levando em consideração que a arte literária participa das relações sociais de poder. Com efeito, um termo chave que parece amarrar essa discussão é o de “democratização da literatura”, tanto no que diz respeito à recepção das obras literárias, visando ampliar o número de leitores em diferentes classes sociais, quanto em relação às esferas de sua produção, buscando incorporar outras vozes autorais. E ainda, como pontuou Dalcastagnè (2005), do “lugar de onde se ouve” a produção dos sujeitos que vivenciam ou vivenciaram condições de marginalidade.

Para que os textos produzidos pelos escritores pesquisados não fiquem relegados à sua importância histórica ou política, alguns estudiosos atentam que é necessário haver, por parte da crítica, “uma renovação, ou pelo menos outros recortes e vieses teóricos” para dar conta de “novos focos, perspectivas e subjetividades” produzidas pela literatura marginal dos escritores da periferia (Zibordi, 2004b, p.86). E, tal como sugere Rodriguez, “isso não significa examiná-los com condescendência, mas sim reconhecer a necessidade de problematizar nossos conceitos do que sejam valor estético e eficácia composicional” (2004, p.55).

Concluindo as reflexões mais gerais que se referem ao movimento de literatura marginal dos escritores da periferia, quero ressaltar que não faz parte dos objetivos deste trabalho forçar um discurso que legitime a importância dos escritores estudados para a literatura brasileira. É evidente que, se os críticos e pesquisadores especializados em literatura não analisarem a produção dos escritores marginais-periféricos segundo os parâmetros da própria disciplina, ela ficará relegada à sua importância política – mesmo que isto, por si só, estimule questionamentos fundamentais, como: o papel social das obras literárias, a universalização da escrita e da leitura, a necessidade da ampliação do número de leitores e a incorporação de novas vozes no discurso literário.

Cabe-nos, agora, recompor as experiências sociais e as trajetórias literárias de três casos particulares para refinar alguns apontamentos feitos até aqui (a apropriação do adjetivo marginal, as experiências sociais e literárias compartilhadas, as características dos produtos literários, os aspectos relativos à produção e circulação dos livros, a atuação cultural, etc.) a fim de narrar a história do movimento literário-cultural com distanciamento da tradição criada pelos próprios escritores."


Referência:
NASCIMENTO, Erica Peçanha do. "Os desdobramentos pedagógico, estético e político da literatura marginal dos escritores da periferia". IN Vozes Marginais na Literatura - RJ, 2009, Aeroplano. pp 70 a 73.



Nenhum comentário: