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quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

O tempero africano - parte 2- (Crônicas de um Peladeiro) por Michel Yakini

Kim Ludbrook/EFE


A Copa das Nações Africanas já tem seus finalistas: Burkina Fasso e Nigéria. Final merecida. As favoritas Costa do Marfim e Gana ficaram pelo caminho e abriram margem para algumas surpresas, entre essas a seleção de Mali, que chegou a semifinal em meio a uma guerra civil no país, entre grupos muçulmanos e a intervenção do exército francês.
Foi a melhor campanha da seleção malinesa, desde 1972, o time nunca ganhou esse titulo, mas seria um momento dos mais importantes para trazer o caneco. Há quem diga e reafirme o futebol somente como alienação, mas não pode negar que é um termômetro da identidade nacional em várias situações.
O Brasil mesmo, até ganhar a sua primeira copa em 58, era tido como um país menor, de pessoas com capacidade de superação duvidosa, com autoestima ferida, tachados, por nós e pelos outros, como um país de perdedores e por mais que o futebol aqui passou a ser cooptado pela politicagem, teve um papel fundamental para nossa existência, pois até então erámos um qualquer na galeria dos fracassados.
O capitão e estrela solitária de Mali, Seydou Keita, sabe bem dessa importância e prometeu colaborar financeiramente com a premiação pela boa campanha do time: "Você não pode imaginar a emoção e estou feliz de estar aqui hoje e ter condições de jogar uma partida que vai trazer alegria para o meu país", disse Keita.
A sua previsão era certa e o país parou pra ver a seleção malinesa jogar, era a chance de chegar a final, ganhar pela primeira vez, garantir uma vaga na Copa das Confederações no Brasil, de colocar Mali no pauta do futebol mundial e espelhar o país positivamente, muito além da melancólica guerra.
Todo esforço pra ver um sorriso do povo malinês e também aflorar as vozes, ir além das lentes e paletós internacionais, suculentos pelo sangue africano, sedentos por um batismo de "conflito étnico" ou "combate a extremistas", sem sequer dar ouvidos ao povo da terra. Pois, por mais que nessas horas o futebol seja cafetinado, alguma verdade há de escorrer do controle.
Um bom exemplo foi à visita da seleção brasileira ao Haiti, vigiado pelo exército canarinho, em 2004, no “o jogo da paz”. Nem tudo foi só festa e boa imagem, nós passamos a olhar com mais cuidado essa “ocupação”, e as contradições apareceram: como suicídio do general brasileiro Urbano Bacellar no Haiti e a aproximação de parte da imprensa e dos movimentos sociais brasileiros com os haitianos. Não houve solução concreta, mas percebemos as farsas que o jogo culminou.
Até os lideres comunitários haitianos que consideravam aquele momento manipulador, entraram na fila do ingresso: “Sabe como é, né, não dá pra perder um jogo com Ronaldinho”, disse um deles no documentário “O Dia em que o Brasil Esteve Aqui” (Direção: Caíto Ortiz e João Dornellas), um retrato da dor amenizada pelo breve, mais significativa, felicidade que a bola nos dá.
Além disso, há o legado que a parte mais esquecida inverte a seu favor, veja como macro-futebol-negócio, reinventou-se nas periferias urbanas de sampa, em organizações comunitárias, reunindo familiares e amigos pro lazer negado, no contra ponto do esporte pra poucos, pro intercâmbio nada favorável com outras quebradas e através do futebol de várzea vem sobrevivendo ao que o Brasil não quer ver, se quiser conferir assista: “Várzea: A bola rolada na beira do coração” (Direção: Akins Kinte), ou vá a um campo aos domingos, nos terrões da diáspora.
Por essas e por outras, torci pra que Mali vencesse a Copa Africana, pra ver dos pés de Keita e companhia os gols que brotariam as vozes, os sorrisos e a esperança do povo malinês, pois o futebol é boa parte da engrenagem enganadora, mas tem o poder da inversão, do drible desconcertante, e nem sempre atende só ao campo inimigo. Os malineses chegaram aonde poucos acreditavam e mantiveram seu povo vivo, alimentaram bons sonhos em meio ao pesadelo e mesmo sem o título se eternizaram como campeões.


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